Wanderlust: viajando com Judy e Gerli

Há mais de quatro meses confinado em casa, venho me dedicando a digitalizar o acervo de imagens de minha família e meu próprio, iniciado em 1965. São milhares de fotografias em cores e em preto e branco, negativos e diapositivos que compõem uma narrativa de nossas vidas através de várias gerações.

Meu avô, Bruno Valentin, médico e pesquisador, foi expulso da Alemanha pelos nazistas no final da década de 1930. Ele e sua esposa, Martha Valentin emigraram em 1939 para o Brasil onde reconstruíram suas vidas. Em 1937, meu pai, Gerhard Valentin, já havia se estabelecido no Rio de Janeiro, onde alguns anos mais tarde conheceu minha mãe, Judy Valentin, também exilada do nazismo. Pagando altas taxas ao governo alemão, Bruno e Martha puderam trazer seus pertences, entre eles, objetos, quadros, roupas, utensílios além de inúmeros documentos e fotografias que meu avô vinha colecionando para montar uma história da família.

Rumo ao Brasil, a bordo do navio “Highland Patriot”, Bruno Valentin olha para  costa de Portugal (foto Gerhard Valentin, 1937)

Gerhard Valentin no Rio de Janeiro, 1937.

Viagens e deslocamentos, forçados ou não, permeiam essa narrativa. Do início
do século XX, há relatos e imagens da família de minha avó, Hellmann, em passeios
ao sul da Alemanha. Meu avô Bruno, nascido em Berlin, realizou seu doutorado em
Würzburg, cidade natal de minha avó Martha. Casaram-se em 1911 e três anos
depois, quando começava a Primeira Guerra Mundial, Bruno alistou-se como médico
no exército alemão. Do front, enviou fotografias e cartões postais para a esposa
e filhos em Nürnberg. Ferido, foi designado para chefiar um hospital de
campanha.

Minha avó, Martha Valentin, sua irmã, pai, mãe e educadora no sul da Alemanha, 1898.

Martha e Bruno Valentin durante a Primeira Guerra Mundial, 1916.

Cartão postal enviado do front de guerra por Bruno Valentin a seu filho Gerhard Valentin, 1918.

De 1924 até o exílio no Brasil, Martha e Bruno moraram em Hannover, onde
ele dirigiu a casa de saúde Annastift, especializada em reabilitação. Desse período
há uma grande quantidade de fotografias e informes das viagens a lazer com a
família ou para encontros científicos. Em 1933, meu pai Gerhard, proibido pelo
governo nazista de cursar a universidade, foi trabalhar numa empresa de despachos
aduaneiros na cidade portuária de Hamburg. Nas férias e feriados, viajou pela
Alemanha de motocicleta com sua namorada e de carro com a família. Produziu
centenas de fotografias e escreveu vários relatos sobre esses trajetos.


Automóvel DKW da família Valentin (foto Gerhard Valentin, 1936).

Esquiando nos Alpes (foto Gerhard Valentin, 1933).

A motocicleta de Gerhard Valentin.

Página de relatório de viagem, 1936.

Nas décadas de 1920 e 1930, a família Kaiser, de minha mãe, também se aventurou
pelas belas paisagens da Baviera. Aventura maior, no entanto, foi a saída forçada
da Alemanha de Anna e Judy Kaiser em 1935 e o retorno dois anos depois para
buscarem o marido e pai, Max Kaiser. Os passaportes apontam passagens pela Áustria,
Bélgica, Suíça e Itália até a chegada no Rio de Janeiro. E, nas montanhas de
Itatiaia, na Serra da Mantiqueira, Judy conheceu Gerhard, se apaixonaram e se
casaram em 1943. O amor do casal e a paixão pela natureza são reveladas em centenas
de fotografias, muitas organizadas em álbuns, bem como extensas descrições dos
passeios.


Judy e Gerhard Valentin em Itatiaia, 1944.

Nas trilhas de Itatiaia, 1944.

Agulhas Negras, Itatiaia (foto Gerhard Valentin, 1944).

Judy e Gehard Valentin na Praia de São Conrado, Rio de Janeiro, 1945.

Judy e Gerli, como ele passou a ser chamado inclusive pelos filhos, mantiveram esse wanderlust ao longo de todas suas vidas. Em 1954, viajaram novamente para a Europa. Fotografias, álbuns e relatos mais uma vez documentam os roteiros. Três anos antes, Bruno e Martha também retornaram para a Alemanha, encontrando sua terra natal ainda em grande parte devastada. As viagens tornaram-se cada vez mais frequentes, fossem a trabalho de Gerhard, ou em férias com Judy e, mais tarde, com os filhos. 

Minha primeira viagem com eles foi em julho de 1960 para Buenos Aires e Bariloche, onde retornamos em 1963. Gerli gostava de esquiar e, em dezembro de 1965 levou a família para Davos. Esse trajeto nos levou também à Alemanha, França e Itália. Em 1967 mudamo-nos para Bangkok, Tailândia, onde moramos até 1970. Dali viajamos para outros destinos na Ásia: Nepal, Singapura, Sri Lanka (que naquela época ainda se chamava Ceilão), Hong Kong e Macau. Fomos também algumas vezes para a Alemanha, visitar Bruno e Martha que em 1967 para lá haviam voltado após o exílio no Rio de Janeiro. 


Página do álbum produzido por Gerhard e Judy Valentin sobre sua viagem à Europa em 1958.

Suíça, 1958: Volkswagen alugado para viajar pela Europa.

Andreas e Gerli em Bariloche, 1963.

Andreas, Gerli e Thomas Valentin em Davos, 1965.

Andreas e Judy em Sri Lanka, 1970.

Minhas duas viagens mais marcantes foram em 1969 e em 1970, quando viajamos por terra da Índia até a Europa. Na primeira, fomos Judy, eu e um amigo da escola; na outra, Judy, meu irmão Thomas e uma amiga da família. Os trajetos eram feitos por trem, ônibus ou carona. Hospedávamo-nos em hotéis simples e baratos. Atravessamos lugares hoje intransponíveis, como o Afeganistão e o Irã. 

Bamian, Afeganistão, 1970.

Bandiamir, Afeganistão, 1970.

Himalaias, 1970.

Paquistão, 1970.

Na Ásia, morando em Bangkok e percorrendo aqueles lugares, apurei meu olhar fotográfico. Revendo hoje essas imagens, volto novamente no tempo e no espaço. Memórias vivas são aguçadas enquanto que aquelas esquecidas são atiçadas pela imaginação. E, com a ajuda do Google Earth refaço os trajetos das viagens de Judy e Gerli e revisito os lugares eternizados por suas fotografias. Lembro-me do filme Les Carabiniers (Tempos de Guerra, 1963), de Jean Luc Godard. Dois jovens, Miguelângelo e Ulisses, são convocados para lutar para o Rei, na certeza de que poderiam fazer o que quisessem com o inimigo e que ficariam ricos. Alguns anos depois, retornam para casa e reencontram suas mulheres (esposas ou mães?), Vênus e Cleópatra. Sua única recompensa foram maletas repletas de fotografias e cartões postais de suas conquistas. “Estamos ricos, temos todos os tesouros do mundo”, exclama Ulisses. Encontro meu tesouro na riqueza dessas imagens que revelam nosso desejo de vaguear pelo mundo. 

Stills do filme “Tempos de Guerra”, de Jean Luc Godard, 1963.

Anotações de Gerhard Valentin resumindo as viagens da família Valentin

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